Daiane da Silva Vicente

 

DITADURA, EXÍLIO E RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA: PENSANDO O ENSINO DE HISTÓRIA ATRAVÉS DA CANÇÃO “APESAR DE VOCÊ” DE CHICO BUARQUE 

 

Este texto tem como proposta discutir o uso da música no ensino de história. Compreende-se que a música pode ser usada como uma fonte histórica a ser trabalhada em sala de aula, evidenciando a relação com o contexto de sua composição e divulgação. Conduzir o estudante “para o estudo da história através de diferentes tipos de documentos históricos enobrece o processo de ensino-aprendizagem, além de aproximá-lo do fazer histórico” (SILVA, 2019, p. 180). Sendo assim, é importante que a professora e/ou professor de história, ao escolher a música esteja ciente sobre o contexto de composição da canção e também do procedimento que envolveu sua interpretação (KERBER, 2003).

 

O período histórico escolhido para a discussão nesse texto é o regime militar brasileiro, instalado no ano de 1964 a 1985. A música selecionada será “Apesar de Você” de Chico Buarque. O motivo da escolha está relacionado à necessidade de estudarmos criticamente este momento histórico, com o objetivo de relembrar as atrocidades para que elas não sejam esquecidas, pois, dessa maneira, poderemos ficar atentas e atentos às situações atuais semelhantes, passando a buscar meios que fortaleçam a democracia brasileira.

 

Na historiografia há duas vertentes que discutem qual seria a nomenclatura adequada para se referir o período de 1964 - 1985, em que o Brasil foi governado por militares. Essa discussão, gerada pelos pesquisadores e/ou pesquisadoras que se dedicam a estudar esse assunto, remete ao sentido de que no Brasil ocorreu uma Ditadura militar ou uma Ditadura civil-militar. A vertente que defende o uso da nomenclatura Ditadura civil-militar, considera o envolvimento de civis no regime autoritário, e atualmente sabemos de vários indícios que comprovam esse envolvimento. Por outro lado, os defensores da outra vertente, não compartilham da mesma ideia, preferindo o termo Ditadura Militar (SILVA, 2017).

 

A justificativa utilizada para a instalação da ditadura, configurou-se em uma suposta ameaça do comunismo, como também, para livrar o país da corrupção, e teria a intenção de restaurar a democracia (FAUSTO, 2018). Ainda de acordo com o historiador Boris Fausto, as instituições do país foram mudadas pelo regime militar através dos Atos Institucionais (AI). Entre todos os Atos Institucionais, o A-5, instalado em 1968, foi o mais severo, em comparação aos atos anteriores, este não tinha prazo de vigência.

 

“O presidente da República voltou a ter poderes para fechar provisoriamente o Congresso, o que a Constituição de 1967 não autorizava. Restabeleciam-se os poderes presidenciais para cassar mandatos e suspender direitos políticos, assim como para demitir ou aposentar servidores públicos.” (FAUSTO, 2018, p. 265) 

 

Durante a ditadura, foi feito o uso de mecanismos para controlarem todas as esferas da sociedade, como a Lei de Segurança Nacional que tinha o objetivo de prender e/ou torturar as pessoas contrárias ao regime; a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), cuja função era investigar qualquer indivíduo e prendê-lo se fosse suspeito de estar envolvido com as organizações políticas de esquerda; e a Lei de Imprensa para controlar os meios de comunicação, cerceando a liberdade de expressão (SILVA, 2019). Sendo assim, “muitos artistas brasileiros passaram a ser censurados e perseguidos pelos militares, principalmente após a instituição do AI-5” (SILVA, 2019, p. 180). 

 

É impossível falar das canções do tempo da ditadura de 1964 e não lembrar dos inúmeros artistas da MPB. Entre eles, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Milton Nascimento, Geraldo Vandré e Chico Buarque. Suas canções, algumas delas fazendo uma enorme crítica, contrárias ao regime ditatorial. Devido a isso, veio a censura, as perseguições, a tortura, o exílio, “Em 1973, foram censuradas 159 letras musicais; em 1976, 198 e, em sua fase final já no ano de 1980 houve um registro de 458 músicas censuradas” (CAROCHA, 2013, p.6). Ocasionando o desconforto da falta de liberdade de expressão, o desconforto da inexistência da democracia. O historiador Marcos Napolitano, ao analisar a documentação do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São Paulo e Rio de Janeiro, referentes aos artistas da MPB, observou que:

 

“A partir de 1971, os shows do chamado “Circuito Universitário” passam a ocupar a maior parte dos informes e relatórios. O inimigo número 1 do regime passou a ser Chico Buarque, secundado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Gonzaguinha e Ivan Lins. Com o exílio de Vandré e sua desagregação enquanto persona pública do meio musical politizado, aliado às novas posturas de Chico Buarque, este passa a ser destacado como o centro aglutinador da oposição musical de esquerda, sendo frequente nas fichas e prontuários aparecer a expressão “pessoa ligada a Chico Buarque de Hollanda”, como se essa relação, por si, aumentasse o grau de suspeição.” (NAPOLITANO, 2014, p. 108)

 

A experiência do exílio, refletiu de várias formas na carreira musical desses artistas. Por exemplo, Caetano Veloso ficou muito deprimido por ter sido obrigado a sair do Brasil, e nesse momento, gravou o disco Transa, com músicas que, entre tantos sentimentos, expressam a saudade de vários aspectos do seu país de origem.

 

O período da ditadura também contribuiu para que outros cantores, de certa maneira, modificassem as suas perspectivas, como é o caso de Chico Buarque, que após o exílio na Itália, retornou para o Brasil com um engajamento político musical mais forte. Portanto, acredita-se ser interessante pensar como a ditadura causou modificações na vida e na carreira de Chico, modificações ocasionadas no decorrer do exílio, que embora tenha ido por vontade própria, quando estava fora do país, recebeu um aviso que seria melhor continuar por lá (Portal Vermelho, 21 de mar. 2020). 

 

“Àquela altura, 1972, Chico Buarque era um dos artistas mais vigiados pela censura e pela “comunidade de informações” e qualquer evento que contasse com a sua presença era digno de atenção. Se Chico Buarque já aparecia como um “agente do grupo da MPB” desde os anos 60, o episódio envolvendo a música Apesar de você, em 1970, quando a crítica ao ditador disfarçada em uma querela amorosa acabou sendo liberada pela censura e vendendo cem mil compactos, até ser cassada, piorou o grau de suspeita que recaía sobre suas costas.” (NAPOLITANO, 2014, p. 113) 

 

Análise da música “Apesar de Você” e o ensino de história

A música “Apesar de Você” do Chico Buarque, foi escrita quando estava exilado na Itália, onde passou mais de um ano. Gravada quando o artista retornou ao Brasil na década de 70, pensando que as questões políticas estavam melhorando. Por mais que Chico acreditasse que a música não iria passar pela inspeção da ditadura, acabou sendo liberada e quando gravada fez um enorme sucesso. No entanto, quando entenderam o que realmente dizia a música, ela foi censurada. Essa foi a primeira canção de Chico Buarque a sofrer com a censura (MATOS, 2011). Segundo Alessandro Matos, esta música de Chico Buarque:

 

“tomará sentido como música de artista engajado somente se assimilarmos o texto com a história. Será necessário colocar a palavra em movimento para formação de significado, suas ambigüidades, ironias, metáforas, enfim, os recursos disponíveis para a criação que busca não cair no óbvio para ludibriar a censura.” (MATOS, 2011, p. 14).

 

Apesar de você (Chico Buarque)

 

Hoje você é quem manda

Falou, tá falado

Não tem discussão, não

A minha gente hoje anda

Falando de lado

E olhando pro chão, viu

 

Você que inventou esse estado

E inventou de inventar

Toda a escuridão

Você que inventou o pecado

Esqueceu-se de inventar

O perdão

 

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Eu pergunto a você

Onde vai se esconder

Da enorme euforia

Como vai proibir

Quando o galo insistir

Em cantar

Água nova brotando

E a gente se amando

Sem parar

 

Quando chegar o momento

Esse meu sofrimento

Vou cobrar com juros, juro

Todo esse amor reprimido

Esse grito contido

Este samba no escuro

 

Você que inventou a tristeza

Ora, tenha a fineza

De desinventar

Você vai pagar e é dobrado

Cada lágrima rolada

Nesse meu penar

 

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Inda pago pra ver

O jardim florescer

Qual você não queria

Você vai se amargar

Vendo o dia raiar

Sem lhe pedir licença

E eu vou morrer de rir

Que esse dia há de vir

Antes do que você pensa

 

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Você vai ter que ver

A manhã renascer

E esbanjar poesia

Como vai se explicar

Vendo o céu clarear

De repente, impunemente

Como vai abafar

Nosso coro a cantar

Na sua frente

 

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

Você vai se dar mal

Etc. E tal

Lá lá lá lá laiá

 

Nessa canção, é possível analisar vários aspectos que remete ao autoritarismo do regime, como também é possível analisar o sentimento de esperança que dias melhores chegarão, ficando explícito logo no início da canção, no refrão “Hoje você é quem manda / Falou, tá falado”, é interpretado que esse “você” é direcionado a ditadura que naquele momento quem estava a frente era o general Emílio Médici. Dessa maneira, se cria o entendimento de que a ditadura, por mais que espalhasse o medo e a angústia, não será algo que permanecerá por muito tempo.

 

“[..] Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Este samba no escuro [...]” Nesse outro trecho, observa-se o sentimento de revolta por causa de todo o desconforto que a ditadura causou, que entre tantas coisas, também podemos colocar o fato de ter motivado a permanência em outro país. Dando continuidade a análise do trecho destacado anteriormente, trata-se também de um tópico que remete ao sentimento de esperança, pois, o “Quando chegar o momento / Esse meus sofrimento / Vou cobrar com Juros, juro” revela esse aspecto de que a situação pode até ser ruim naquele momento, mas não continuará assim, havendo a oportunidade de justica. A música por inteira é um hino de protesto e resistência contra a repreensão da Ditadura “Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia”.

 

Algumas letras de músicas, como, por exemplo, a mencionada anteriormente, ao ser interpretada, percebe-se que as informações trazidas podem auxiliar o/a estudante “a “apreender” o que, por sua vez, poderá refletir numa melhor compreensão do processo histórico, dos conteúdos escolhidos e dos fatos ocorridos neste determinado período.” (FREITAS; PETERSEN, 2015, p.42). Segundo Luciano Azambuja:

 

“A música pode ser usada em uma aula de história porque pode ser apropriada como fonte histórica para a aprendizagem histórica, cuja finalidade última serve para a formação da consciência histórica e a constituição da identidade histórica de alunos jovens e adultos.” (AZAMBUJA, 2014, p. 238)

 

Ainda de acordo com Azambuja, em seu artigo “Canções da Ditadura: aula audição, cultura histórica e cultura juvenil”, ele chama atenção para algo interessante, que nesse momento final do texto, pode nos servir para refletir sobre outras formas de trabalhar com músicas em sala de aula. É mencionado, por ele, a aula audição que seria “a tarefa que consiste na escolha por parte dos alunos de uma música dos seus gostos musicais que pode ser usada em uma aula de História.” (AZAMBUJA, 2014, p. 243).

 

Neste trabalho, coloquei como proposta uma música para ser trabalhada em sala de aula (“apesar de você” de Chico Buarque), ou seja, uma canção que poderia ser levada pela professora ou professor, mas isso não impede de adotarmos outras metodologias de ensino com o uso de músicas. A proposta da aula audição, também parece ser atraente, por permitir que as/os estudantes possam optar pelas canções que chamem sua atenção. Segundo o autor mencionado anteriormente:

 

“As músicas podem ser reproduzidas, recepcionadas e defendidas na aula audição procurando responder as perguntas históricas formuladas pelo professor- pesquisador: “Por que usar essa música em uma aula de História?”; “Para que usar essa música em uma aula de História?”.” (AZAMBUJA, 2014, p. 243-244)    

 

Portanto, é urgente e necessário aprofundar os estudos sobre a ditadura civil-militar nas aulas de história, principalmente devido ao momento atual de exaltação da ditadura de 1964 e o negacionismo. Fazer uso de canções no ensino de história é importante não somente devido a sua utilidade como fonte histórica a ser trabalhada, mas também, por deixar as aulas mais atraentes e agradáveis.

 

Referência Biográfica

Daiane da Silva Vicente é graduada em Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco. Especialista em Docência e Prática da História do Brasil pela Faculdade Focus.  Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: daianesv567@gmail.com 

 

Referências Bibliográficas

AZAMBUJA, Luciano de. Canções da Ditadura: aula audição, cultura histórica e cultura juvenil. Revista de Teoria da História Ano 6, Número 12, Dez/2014 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892. 2014, p. 230-249.

 

CAROCHA, Maika Lois. “Pelos versos das canções": censura e música no regime militar brasileiro. Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <http://snh2013.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Maika%20Lois%20Carocha.pdf>. Acesso em: 17 de out. de 2020.

 

FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018.

 

FREITAS, Vânia Maria Oliveira de; PETERSEN, Graciane Trindade. Música e Ensino de História. REVISTA DI@LOGUS. Universidade de Cruz Alta - RS. ISSN 2316-4034 – Volume 4 nº4. 2015, p.34-50. 

 

Há 50 anos, Chico Buarque voltava do exílio em Roma. In.: Portal Vermelho: a esquerda bem informada. 21 de março de 2020. Disponível <em:https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/ha-50-anos-chico-buarque-voltava-do-exilio-em-roma/>. Acesso em: 30 de julho de 2022.

 

KERBER, Alessander. Considerações acerca dos desafios teórico metodológicos para o uso da música no ensino de história. Textura: Canoas. n. 6/7. mar.2002/mar.2003, p. 93-97.

 

NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 47, 2014, p.103-126.

 

SILVA, Fábio Alexandre da. A música como documento histórico e instrumento didático: um estudo sobre a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Rev. Fac. Educ. (Univ. do Estado do Mato Grosso), Vol. 31, Ano 17, N°1, p. 177-195, jan./jun., 2019.

 

SILVA, Tatianne Ellen Cavalcante. Memórias Femininas no Bom Pastor – PE: gênero, repressão e resistências durante a Ditadura Civil-Militar brasileira (1964-1985). 2017. 159 F. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2017. 159 p.

4 comentários:

  1. Parabéns pelo trabalho, Daiane! Acredito que o uso de músicas nas aulas de história torna o contexto ensinado ainda mais "palpável", sobretudo o contexto das ditaduras militares na América Latina, em que as canções de protesto ocuparam um importante papel de resistência. Gostei da proposta de "aula-audição" e acredito que alguns clipes e as letras também possam contribuir para o trabalho com a música, sobretudo, quando existem estudantes surdos/as na sala de aula. Sendo assim, que propostas de atividades ou sequência didática ou dinâmica, etc, você poderia indicar para orientar o planejamento das aulas utilizando a música "Apesar de você" (ou outras) como recurso didático?
    ass: Miléia Santos Almeida

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  2. Oi, Miléia!
    Obrigada!
    Acredito que existam várias possibilidades para se trabalhar música em sala de aula, às vezes, o que precisamos é de criatividade. Também é importante analisar o perfil da turma que gostaríamos de desenvolver tal atividade. Uma proposta que acho interessante, seria ao invés de levar músicas, levar apenas nomes de cantores/cantoras e pedir que os estudantes desenvolvam uma pesquisa sobre a trajetória desses indivíduos e que localizem eles mesmos uma música de protesto, desenvolvendo um texto sobre a trajetória da pessoa e explicando o motivo da escolha da música do artista.

    Daiane da Silva Vicente

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  3. Boa tarde, ótimo texto, a música vem como um instrumento de analise de um período que tanto marcou a nossa história recente no país e que também serviu como um símbolo de luta e resistência dos artistas e da população. Dentro da proposta de trabalhar a música e o tema trabalhado da Ditadura militar, de que maneira você vê o ensino da história no Brasil em um período politicamente tão tenso e com inúmeras referências feitas a Ditadura Militar no Brasil por nossos representantes?


    Gustavo Luiz da Costa Racco

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  4. Oi, Gustavo!
    Obrigada pela pergunta!
    Interessante sua pergunta. Embora as dificuldades e perdas da carga horária da disciplina de história, acredito que o ensino de história é um dos principais meios de tentarmos corrigir esses discursos perigosos. Se pensarmos um pouco na história do ensino de história, hoje estamos em uma situação melhor do que no período da ditadura de 1964. Me parece que essas questões atuais, de valorização da ditadura, negacionismos, são falhas que ocorreram no ensino de história em algum momento lá atrás. O/a professor/a de história carrega uma responsabilidade muito grande. O nosso papel de professores/as, pesquisadores/as é lembrar e não deixar que as memórias de um passado tenebroso sejam esquecidas.

    Daiane da Silva Vicente

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