Miléia Santos Almeida

 

“UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA”: EXPERIÊNCIAS DO USO DE FILMES COMO RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO REMOTO/HÍBRIDO DE HISTÓRIA

 

 

“Viver sem conhecer o passado é andar no escuro” é uma das muitas lições que abrem e fecham o enredo do filme “Uma história de amor e fúria”, animação de 2013, escrita e dirigida por Luis Bolognesi, cujo protagonista imortal atravessa seiscentos anos de história do Brasil, do passado colonial de resistência indígena a um futuro distópico em 2096, perpassando contextos históricos como a revolta da balaiada e a resistência à ditadura militar brasileira. Essa fórmula, por si só, já torna a obra mais do que indicada como material de apoio didático nas aulas da educação básica, sobretudo, durante a implementação do modelo de ensino remoto emergencial, que se impôs a comunidade escolar como alternativa possível durante a pandemia de covid19, e que demandou de professoras e professores o aprendizado de ferramentas tecnológicas que diminuíssem a distância entre os/as estudantes e as salas de aula.

 

Este texto se propõe a narrar uma experiência de educação histórica durante a pandemia, a partir de atividades realizadas por meio de ferramentas do Google (Meet, Classroom, Forms e YouTube) com estudantes das três séries do ensino médio no interior da Bahia, tendo como recurso didático o filme Uma História de Amor e Fúria. Além disso, possibilita o estímulo a um olhar decolonial – perspectiva teórico-metodológica que busca romper com a hegemonia do eurocentrismo no conhecimento ocidental – em sala de aula, atendendo a propostas curriculares que, muitas vezes, não se consolidam na prática escolar diante da falta de recursos e tempo hábil ao planejamento. Como afirma Walter Mignolo “um dos objetivos da descolonialidade é transformar os termos da conversa e não só seu conteúdo” (2017, p. 17), afirmando um compromisso não somente acadêmico, mas um projeto político.

 

Fonte: Cena do filme Uma História de Amor e Fúria (2013). Reprodução.

 

Em Uma História de Amor e Fúria, somos conduzidos/as pela perspectiva em primeira pessoa do herói protagonista (Selton Melo) durante a narrativa. A sua jornada conecta passado e presente por meio das lutas sociais e políticas que se colocam em seu caminho devido às forças maléficas de Anhangá, tendo como fio narrativo a incansável busca pelo amor de Janaína (Camila Pitanga) em todas as vidas obtidas graças ao dom da imortalidade. Inicialmente sob o nome Abeguar, o guerreiro indígena tupinambá tenta salvar seu povo do extermínio imposto pelos portugueses na colonização inicial da Baía de Guanabara. Em sua próxima encarnação humana, como Manoel Balaio, ele organiza uma revolta popular no Maranhão, contra o autoritarismo do governo da província e os desmandos dos proprietários locais, de caráter antiescravista, a balaiada (1838-1841). Num salto temporal, se torna Carlos Estrada (Cau), jovem que se junta a uma organização de guerrilha durante a ditadura militar e, após anos de prisão e tortura, se torna professor em uma favela carioca. No futuro Rio de Janeiro (2096), dominada pelas milícias particulares e em meio a uma grande escassez de água, o herói reencarna como JC, um jornalista que publica sobre a desigualdade, mas não interfere na situação até descobrir a verdadeira identidade de seu amor, Janaína. “A gente sempre está lutando por alguma coisa” é mais uma frase que conecta os vários eventos históricos e a jornada do protagonista, onde a resistência individual e por aqueles que ama se torna uma luta coletiva e eterna.

 

É preciso considerar que o cinema e as produções audiovisuais (filmes, séries, novelas, etc.), em sua maioria, não foram produzidos com o objetivo inicial de serem adotados na educação histórica e, antes de se constituírem como um recurso didático para a sala de aula, são uma fonte histórica que auxilia na interpretação não somente do período ao qual se propõem representar em sua narrativa, mas da própria época em que foram produzidos. Afinal, “a crítica não se limita somente ao filme, integra-o no mundo que o rodeia e com o qual se comunica necessariamente”. (FERRO, 2010, p. 32). Dessa forma, “Uma história de amor e fúria”, lançado no turbulento ano de 2013 no Brasil, nasceu em uma década onde inúmeros direitos sociais baseados na necessidade de reparação histórica foram reivindicados e a criação de políticas públicas afirmativas, ainda que tímidas e limitadas, permitiu a ocupação de espaços outrora inacessíveis por populações historicamente excluídas e marginalizadas. Nesse sentido, o uso de diferentes linguagens no ensino de história permite aos/as docentes e discentes nas aulas a oportunidade não apenas de incorporar metodologias ativas que ofereçam maior protagonismo estudantil, mas a possibilidade de romper com “o perigo de uma história única” e com as lacunas presentes nos livros didáticos, e o cinema em si exige de nós uma postura crítica e problematizadora, como em relação às demais fontes históricas”. (FONSECA, 2009, p. 157).

 

Vale ressaltar que o modelo de ensino remoto emergencial difere do modelo de educação a distância. Adotado no contexto da pandemia de covid19 iniciada em 2020, o primeiro combinava o uso de tecnologias e espaços virtuais de forma síncrona – onde existe o intercâmbio entre o docente e as turmas de discentes em tempo real, mediada por vídeo-conferências (aulas online) – e de forma assíncrona – por meio da disponibilização de atividades, roteiros e materiais digitais em plataformas que possam ser acessadas em horários flexíveis. Por sua vez, a escola onde atividade foi desenvolvida, o Colégio Estadual Manoel Macedo Cirilo, localizado na cidade baiana de São Desidério, possui um alto percentual de estudantes oriundos da zona rural e/ou com acesso reduzido à internet, o que dificultava bastante a frequência discente nas aulas síncronas e, por isso, espaços como o Google Classroom foram importantes não somente para receber e avaliar atividades, mas para a disponibilização de materiais digitais. Além disso, materiais impressos eram elaborados e ofertados no espaço físico da escola para estudantes sem acesso mínimo às aulas remotas. Sem dúvida, esse processo foi bastante desgastante para os/as docentes que precisaram realizar três tipos de planejamento e obtiveram um retorno, muitas vezes, insatisfatório. A exibição do filme ocorreu, portanto, nos momentos de aula síncrona, por transmissão do YouTube para o Google Meet e com disponibilização do link e arquivo de vídeo para acesso em outros períodos da rotina escolar. Como a atividade foi proposta em três séries diferentes, ela foi realizada sempre após o desenvolvimento de um determinado conteúdo (objeto do conhecimento) contemplado pela obra em aulas expositivas, introduzindo a priori debates que envolviam categorias como fonte histórica, sujeito histórico, tempo vivido e narrativa, que seriam problematizadas em relação ao enredo do filme.

 

Como pontua Marcos Napolitano “é preciso que o professor atue como mediador, não apenas preparando a classe antes do filme como também propondo desdobramentos articulados a outras atividades, fontes e temas” (NAPOLITANO, p. 15). A etapa seguinte do planejamento didático-pedagógico do uso do filme correspondeu à disponibilização de um formulário do Google Forms que mesclou questões objetivas (de múltipla escolha) e subjetivas (dissertativas) acerca do enredo, personagens, narrativa e questões históricas abordadas pelo filme, além de suas condições de produção. Formulários online representam uma alternativa viável para realização de entrevistas, enquetes, gamificação, testes, questionários, com retorno imediato. Analisaremos algumas respostas oferecidas por meio desse questionário. Em função da proposta sintética do texto, optamos por selecionar algumas declarações somente de estudantes do 2º e 3º ano, que se repetiram ou se destacaram por meio de uma análise qualitativa de conteúdo (BARDIN, 2011) e não quantitativa. Observemos:

 

Fonte: Questionário em Formulário Google aplicado com estudantes do 2º e 3º ano do Colégio Estadual Professor Manoel Macedo Cirilo (São Desidério-BA)

 

Em tempos de avanço do negacionismo científico e revisionismo histórico que alcançam os/as jovens, sobretudo, por meio das redes sociais e plataformas audiovisuais, é importante a ênfase nas condições de produção de uma obra fílmica de ficção que possui um ou vários contextos históricos. Uma história de amor e fúria é um filme de ficção que, embora lançado em 2013 e em formato de animação, demandou seis anos de pesquisa e produção. Por isso, as respostas relativas a esse processo em uma das questões propostas no formulário e, observadas na imagem acima, se destacaram e oferecem possibilidades de explorar tais aspectos das produções audiovisuais tanto documentais quanto de ficção histórica. Analisar o filme enquanto um produto de pesquisa documental e de construção de narrativa auxilia na percepção da história não como um dado imutável e unidimensional, mas como produção de conhecimento viva e plural.

 

Fonte: Cena do filme Uma História de Amor e Fúria. Reprodução.

 

“Nossos heróis não viraram estátua, morreram lutando contra quem virou”. Essa frase, bastante citada pelos/as estudantes ao destacar momentos marcantes da obra, abre uma série de possibilidades para a abordagem da invisibilização de vários sujeitos e eventos históricos, assim como a validade das homenagens feitas a nomes contraditórios como bandeirantes, militares, políticos coronelistas, entre outros, presentes em monumentos, nomes de ruas, praças e escolas. Inclusive, a escola estadual onde a atividade foi realizada havia passado recentemente pela mobilização para substituição do nome de seu patrono, anteriormente um dos generais presidentes na ditadura militar brasileira: Presidente Médici e, agora carrega o nome de um ex professor e membro da comunidade em que se localiza a escola. A ideia de uma “história vista de baixo”, que rompe silêncios e apresenta sujeitos históricos insubordinados, perpassa assim toda a produção e provoca a reflexão de quem acompanha o enredo. No formulário, observamos que as cenas mais evocadas pelos/as estudantes remetem aos processos de exclusão, opressão e desigualdade que marcaram a história do país.

 

 




Fonte: Questionário em Formulário Google aplicado com estudantes do 2º e 3º ano do Colégio Estadual Professor Manoel Macedo Cirilo (São Desidério-BA)

 

Vale ressaltar que algumas imprecisões históricas ou reforço de narrativas hegemônicas despontam no enredo e devem ser problematizadas com os/as estudantes, pois nenhuma obra é impassível de questionamentos, por mais bem elaborada que seja. As imagens da antropofagia indígena e da “aniquilação total da nação tupinambá”, por exemplo, carecem de um diálogo mais profundo com os debates historiográficos e com as experiências das etnias tupinambás contemporâneas que sobreviveram aos séculos de genocídio e marginalização, utilizando das muitas maneiras de “suspender o céu” ou como informa Ailton Krenak “da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos” (2019, p. 14).

 

O enredo de “Uma história de amor e fúria” também abarca o contexto da ditadura militar no Brasil. Como afirma Carlos Fico, “há muitas maneiras de se contar a história do regime militar, todas praticadas pela crescente historiografia sobre o período” (2007, p.167) e, nesse caso específico da narrativa ficcional inspirada nos eventos históricos, o filme opta pelo foco nos caminhos da resistência armada diante da escalada da repressão. Na atual conjuntura política do Brasil, esse é um dos temas que provoca grande insegurança aos docentes, enquanto conteúdo sensível, em função da aberta perseguição ideológica nas escolas que foi imposta pelo avanço do neoconservadorismo. No que se refere a esse processo no formulário aplicado, destacamos que os posicionamentos encontrados nas respostas são de compreensão da situação política do país e elaboração de uma consciência histórica.

 


Fonte: Questionário em Formulário Google aplicado com estudantes do 2º e 3º ano do Colégio Estadual Professor Manoel Macedo Cirilo (São Desidério-BA)

 

Por sua vez, vale a pena ressaltar os conflitos que o tema ainda provocado, como podemos visualizar nas declarações abaixo. Apenas uma voz dissonante demonstra discordância em relação a cena da “retomada revolucionária” em um assalto a banco organizado por um movimento de guerrilha e resistência ao governo ditatorial, revelando um tom de julgamento moral das ações dos sujeitos do passado. Enquanto isso, na mesma turma, outro estudante observa a mesma cena sob outra perspectiva, o que poderia gerar um debate interessante em sala de aula.

 

Fonte: Questionário em Formulário Google aplicado com estudantes do 2º e 3º ano do Colégio Estadual Professor Manoel Macedo Cirilo (São Desidério-BA)

 

Por fim, ressaltamos entre o horizonte de possibilidades descortinado pelo filme “Uma história de amor e fúria”, a prerrogativa de se explorar as relações temporais entre passado, presente e futuro. Afinal, a obra se encerra com a mesma cena em que inicia, que naquele momento foi utilizada como elemento de suporte para introduzir a história, mas também como forma de “conectar” as ações humanas do passado e do futuro/presente e revelar suas continuidades. Como afirma Marc Bloch, “tempo humano, em resumo, permanecerá sempre rebelde tanto à implacável uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio” (BLOCH, 2002 p. 153). Nas respostas do questionário, essa relação foi exemplificada.

 

Fonte: Questionário em Formulário Google aplicado com estudantes do 2º e 3º ano do Colégio Estadual Professor Manoel Macedo Cirilo (São Desidério-BA)

 

“Ninguém pode ser feliz enquanto o seu povo caminha para o abismo” é mais uma das frases que abrem e encerram a produção fílmica e, ao definir a narrativa da obra também nos oferta a possibilidade de uma linguagem/fonte para a educação histórica que não seja somente uma ilustração do passado, mas uma ferramenta de desenvolvimento de uma consciência histórica que é também emancipadora. Afinal, “Uma história de amor e fúria” aborda abertamente o papel das ações humanas na transformação das estruturas, entre vitórias e derrotas nas lutas dos/as marginalizados. E, ainda que um certo pessimismo racional transpareça nas possíveis lições do filme, a sua principal lição pode ter sido traduzida pelo educador Paulo Freire:

 

O que não é possível é estar no mundo, com o mundo e os outros, indiferentes a uma certa compreensão de porque fazemos o que fazemos, de a favor de que e de quem fazemos, de contra que e contra quem fazemos o que fazemos. O que não é possível é estar no mundo, com o mundo e com os outros, sem estar tocados por uma certa compreensão de nossa própria presença no mundo. Vale dizer, sem uma certa inteligência da História e de nosso papel nela (FREIRE, 2000, p.125).

 

Em tempos tão difíceis para sonhadores/as e, entre eles/as, professores/as e estudantes de história, obras como “Uma história de amor e fúria” não são apenas recursos didáticos ou documentos/monumetos, mas aliadas políticas no processo de ensino. Devem ser problematizadas, contextualizadas e ressignificadas, mas sobretudo, tem o poder de encantar, de incomodar e de despertar o sentido da aprendizagem histórica como ferramenta de interpretação e transformação do mundo em que vivemos e das relações humanos nele. Afinal, a única forma de vencer Anhangá é não desistir do futuro do nosso povo.

 

Referências biográficas

Msa. Miléia Santos Almeida, professora da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e Secretaria de Educação da Bahia (SEC BA). Doutoranda em História pelo PPGHis da Universidade de Brasília (UnB).

 

Referências bibliográficas

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

 

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro – RJ. Jorge Zahar Editor Ltda., 2002.

 

FERRO, Marc. Cinema e História. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

 

FICO, Carlos. Censura e propaganda: os pilares básicos da repressão. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Orgs). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 167-201.

 

FONSECA, Selva Guimarães. Cinema e ensino de história. Revista do Arquivo Público Mineiro. Estante Antiga. MG, 2009.

 

FREIRE, Paulo Reglus. Pedagogia da Indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.

 

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

 

MIGNOLO, Walter. Desafios Decoloniais Hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu/Pr, 1(1), pp. 12-32, 2017.

 

NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema em sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003.

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